Fevereiro 2022

Quaresma 2022 – O tempo favorável da escuta

«Eu respondi-te no tempo da graça e socorri-te no dia da salvação” (Is 49, 7). É promessa do próprio Deus que, em cada tempo favorável, não nos faltará com as suas graças, aquelas que sabemos precisar, mas sobretudo as que só o Espírito Santo sabe e pode dar.

Inicia a Quaresma, esse tempo favorável de escuta: escuta atenta da Palavra de Deus que renova, escuta do amor misericordioso de Deus que salva e escuta dos irmãos de caminho que pedem o melhor de nós. São 40 dias favoráveis a um percurso espiritual com consequências concretas e visíveis nas práticas cristãs da oração, do jejum e da esmola.

Porém, esta Quaresma de 2022 é tempo duplamente favorável: decorre em pleno tempo de escuta sinodal na nossa diocese. É uma fase de preparação do Sínodo, rica e envolvente, em que tudo inicia na necessidade de uma escuta renovada de Deus e dos irmãos, que ilumine, incentive e dê esperança no futuro. Um tempo que apela à reciprocidade: escutar e ser escutado. É bom não o esquecer: o Sínodo é um capítulo da história da salvação que Deus opera na Igreja universal. Podemos sonhar juntos uma Igreja diversa: mais gerada que gerida, mais caminho que estacionamento, mais casa do Povo de Deus em saída que clube de praticantes. Escutar a todos faz bem à própria Igreja.

Servem-nos três símbolos expressivos para viver juntos a experiência sinodal em tempo de Quaresma: o deserto, o caminho e a cruz.

1. O deserto 

Neste tempo favorável, a Liturgia do 1º domingo da Quaresma propõe-nos o relato das tentações de Jesus no deserto, convidando a olhar o lugar de Deus na própria vida e a qualidade da missão que nos anima. À tentação dos bens, do poder ou de uma missão triunfal, a Palavra ressoa forte: “nem só de pão vive o homem” ou “só a Deus adorarás”! 

O Processo Sinodal é também um processo espiritual. Não é um exercício mecânico de recolha de dados ou uma série de reuniões e debates. A escuta sinodal tem em vista o discernimento que é palavra-chave em todo o processo e a razão de toda a escuta. Num sentido espiritual, o discernimento é a arte de interpretar para onde nos conduzem os desejos do coração, sem nos deixarmos seduzir por aquilo que nos leva aonde não devemos ir. O discernimento envolve reflexão na tomada de decisões nas nossas vidas concretas para procurar encontrar a vontade de Deus.

Então comecemos por nós, entremos no deserto e a “deixemo-nos discernir pelo Espírito de Deus”!  Deserto é sinónimo de isolamento, de silêncio, de possibilidade de escuta de Deus e encontro com a verdade de nós próprios. Hoje há uma tremenda falta de silêncio e, quando não há ruído ou trabalho, muitas pessoas sentem-se incomodadas porque não sabem o que fazer. O deserto lembra esta oportunidade para nos deixarmos penetrar pelo Espírito de Deus, como indivíduos. O discernimento é, então, uma graça a acolher de Deus em relação ao que se é e se vive como discípulos de Jesus. 

A pergunta universal para a escuta sinodal é: “anunciando o Evangelho, uma Igreja sinodal ‘caminha em conjunto’: como é que este ‘caminhar juntos’ se realiza hoje na nossa Igreja?”. Neste deserto, podemos escutar pessoalmente o “silêncio onde Deus fala” e interrogar-nos: “como me sinto na Igreja? Sinto-me plenamente dentro, participando da missão comum ou nem por isso? O que me entristece? Como olho para os outros que, porque batizados, devem caminhar comigo e eu com eles? Como evangelizo na minha família, trabalho, escola ou grupo da paróquia? Que posso mudar em mim para caminharmos mais em conjunto? Que propostas tenho para fazer a Igreja mais de todos?”

A fidelidade, para ser verdadeira, é posta à prova; o deserto é então símbolo de purificação, de libertação de tudo o que é ambíguo e desviante na experiência de Deus. Para este completo discernimento de nós próprios, reconheceremos as nossas situações de não-liberdade: indiferença, autossuficiência, egoísmo, orgulho, presunção, agressividade, etc. Queixamo-nos destas escravidões todos os dias e limitamo-nos, porventura, a acusar a decadência da sociedade e também a da Igreja. 

Desta vez, vamos “desmascarar-nos” a nós próprios! Para nos lançarmos num caminho novo!

 2. O Caminho 

Após as tentações no deserto, Jesus deu início à missão: anunciar o Evangelho do reino. Para tal, chamou um grupo com quem caminhar, começou a ensiná-los ao longo do caminho, mergulhou-os no mistério da Sua Paixão, Morte e Ressurreição. Um longo caminho, sem pressas e sem queimar etapas. Só perceberiam plenamente quando, após a ressurreição, receberam o Espírito Santo.

Mais que para um Sínodo dos Bispos em 2023, o Papa convocou todo o Povo de Deus para um caminho sinodal, esperando que, por graça de Deus, no final, todos tenhamos adquirido um estilo mais participativo e mais sinodal de ser e viver em Igreja. Um estilo que, só por si, seja já evangelização. Cabem todos neste caminho, até os não praticantes, indiferentes ou descrentes. Que bela esta Igreja que se abre, que vai ao encontro, que se faz próxima, que ganha a confiança de quem a olha com desconfiança, que não se preocupa com os números, mas com as pessoas.

Com este símbolo do caminho, à semelhança de Jesus, somos convidados a cuidar da renovação dos grupos a que pertencemos, a procurar momentos de escuta e enriquecer o discernimento comunitário. Não se imaginam os frutos que brotariam numa família onde os seus membros se perguntassem uns aos outros: “que exemplo de ser Igreja vos tenho dado e que exemplo me dão vocês a mim? Como é que eu tenho sabido viver e comunicar o Evangelho na família? Quem o faz melhor cá em casa e pode ajudar os outros? Como nos temos aberto a outras famílias para caminharmos juntos? Como temos participado ativamente nas dinâmicas pastorais da paróquia e na evangelização do mundo? Como temos caminhado com os mais pobres e frágeis? Que propostas temos para fazer a Igreja mais familiar, mais fraterna?”

Para melhor encarnar a sinodalidade, as famílias com as suas histórias de diálogo e discernimento, de tensões e acordos, são essenciais. Elas sabem o que custa estar juntos, amarem-se nas diferenças, ouvir-se e dizer tudo com clareza, sem medo, porque sabem que vão ser escutados com amor! 

Isto pode ser replicado em cada grupo pastoral ou outro. Quem não se deixou ainda fascinar, pelo menos uma vez, pela possibilidade de uma paróquia viva, por uma liturgia participativa e bem animada, pelo ideal de família onde a conjugalidade fiel e fecunda é o sinal do amor de Deus, por uma catequese que envolva crianças e pais num único esforço educativo, por uma caridade testemunhada que chega aos últimos, pela possibilidade de uma justiça mais generalizada? Às vezes, talvez demasiadas, começámos! Depois, não vimos os resultados, que esperávamos serem automáticos e a curto prazo. E o desânimo chegou, como aos apóstolos: “Senhor, andámos à pesca a noite toda e não apanhámos nada!” Também este ano, Jesus repete: “Faz-te ao largo e lança as redes” (Lc 5, 1-1). Tudo isto, depende de mim, de ti, de nós! Depende de nos questionarmos juntos e de assumirmos as consequências de termos ousado a escuta… Porque Deus fala sempre. Se O deixarmos!

Fica a sugestão para uma penitência quaresmal coletiva: constituir ou participar num grupo de escuta sinodal, com as pessoas da família, mas também de grupo paroquial, de associação, escola ou outro, não para pedir opiniões, mas para fazer experiência da graça própria deste estilo sinodal. Qualquer local ou modo serve: em casa, num espaço de reuniões ou num ocasional encontro de amigos ou colegas, numa caminhada organizada ou num café, na igreja ou no mundo. Que ninguém fique de fora. A escuta não é para reivindicar, para acusar, para denunciar, mas para discernir caminhos novos para nós batizados, para as nossas comunidades eclesiais, para a Igreja e para o mundo. No final, ajudaria escrever a experiência feita e o que perceberam em conjunto. Quem sabe se não ganharão o gosto de continuar o caminho iniciado…

3. A cruz 

Este último símbolo é enriquecido com as imagens que nos chegam da peregrinação dos símbolos da Jornada Mundial da Juventude que percorrem as dioceses do país e chegarão até nós em outubro. Quando é transportada, precisa de um grupo que a carregue! Como se Cristo, o verdadeiro Senhor da cruz, fosse “esse grupo” de pessoas, unidas pelo ritmo conjunto da passada, jovens ou outros, que a levam com veneração. Ali, vimos sobretudo jovens centrados no Amor radical de que Jesus é modelo; jovens que mostram à Igreja a pressa do amor que une a todos numa única fraternidade; jovens que não querem ir à frente nem atrás dos mais velhos ou mais novos, de padres ou bispos, de leigos muito crentes ou homens descrentes, mas querem seguir juntos. São imagem da Igreja peregrina, não acomodada e envelhecida. Também podemos ir com eles, prontos a transportar a mesma cruz de Cristo nos sofrimentos próprios e nos da humanidade sofredora. Nela podemos descobrir a presença amorosa de Deus, sobretudo se, ao lado, alguém caminha e ajuda a carregá-la, qual mão amorosa, sinal da proximidade de Deus. 

Defendi-te e designei-te como aliança do povo, para …dizeres aos prisioneiros: ‘Saí da prisão!’ e aos que estão nas trevas: ‘Vinde à luz!’ (Is 49, 8-9). Neste percurso quaresmal em estilo sinodal, somos desafiados a interrogar-nos sobre quem deixamos sozinhos no caminho, quais as periferias abandonadas ou ignoradas, quais são os mais carenciados de companheiros de estrada, para discernir por quem começar e com quem ir. É-nos pedida uma intenção “agápica” de acolher a todos como Jesus fez até ao fim (Jo 13, 1), até ao dom de si na cruz, de caminhar com eles até “sairem das prisões e abandonarem as trevas” como diz o Profeta. E isto significa a intenção de escutar, de compreender a partir de dentro, de dar o primeiro passo, de se fazer um, de saber esperar e de saber dar a sua contribuição no momento certo e do modo certo. 

É necessário manter vivo o entusiasmo pelos caminhos novos, para não ir pelos de sempre que podem apenas parecer mais seguros, mas não conduzem a uma Páscoa Nova. Gostaríamos de atalhos rápidos, enquanto Deus escolhe a gradualidade e tempos longos fazendo-nos entender que a Páscoa não é um lugar ou algo material, mas uma forma de ser novo, renovado, nas relações com Deus, com nós mesmos, com os outros e com a criação: “Serei o teu Deus e serás o meu povo” (Ex 6,7).

Este entusiasmo, que é também força e coragem, chega-nos da certeza de que Jesus caminha com a Sua Igreja, levando-a por onde deve ir. Tudo depende da nossa vontade de responder ao convite de Deus com uma palavra simples, mas capaz de mudar a história. É o nosso “aqui estou”: estou aqui pronto para o caminho!

D. Manuel Linda

D. Pio Alves

D. Armando Domingues

D. Vitorino Soares

Mensagem do Papa Francisco para a Quaresma 2022

 

Queridos irmãos e irmãs!

A Quaresma é um tempo favorável de renovação pessoal e comunitária que nos conduz à Páscoa de Jesus Cristo morto e ressuscitado. Aproveitemos o caminho quaresmal de 2022 para refletir sobre a exortação de São Paulo aos Gálatas: «Não nos cansemos de fazer o bem; porque, a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido. Portanto, enquanto temos tempo (kairós), pratiquemos o bem para com todos» (Gal 6, 9-10a).

 

1. Sementeira e colheita

Neste trecho, o Apóstolo evoca a sementeira e a colheita, uma imagem que Jesus muito prezava (cf. Mt 13). São Paulo fala-nos dum kairós: um tempo propício para semear o bem tendo em vista uma colheita. Qual poderá ser para nós este tempo favorável? Certamente é a Quaresma, mas é-o também toda a nossa existência terrena, de que a Quaresma constitui de certa forma uma imagem.[1] Muitas vezes, na nossa vida, prevalecem a ganância e a soberba, o anseio de possuir, acumular e consumir, como se vê no homem insensato da parábola evangélica, que considerava assegurada e feliz a sua vida pela grande colheita acumulada nos seus celeiros (cf. Lc 12, 16-21). A Quaresma convida-nos à conversão, a mudar mentalidade, de tal modo que a vida encontre a sua verdade e beleza menos no possuir do que no doar, menos no acumular do que no semear o bem e partilhá-lo.

O primeiro agricultor é o próprio Deus, que generosamente «continua a espalhar sementes de bem na humanidade» (Encíclica Fratelli tutti, 54). Durante a Quaresma, somos chamados a responder ao dom de Deus, acolhendo a sua Palavra «viva e eficaz» (Heb 4, 12). A escuta assídua da Palavra de Deus faz amadurecer uma pronta docilidade à sua ação (cf. Tg 1, 19.21), que torna fecunda a nossa vida. E se isto já é motivo para nos alegrarmos, maior motivo ainda nos vem do chamamento para sermos «cooperadores de Deus» (1 Cor 3, 9), aproveitando o tempo presente (cf. Ef 5, 16) para semearmos, também nós, praticando o bem. Este chamamento para semear o bem deve ser visto, não como um peso, mas como uma graça pela qual o Criador nos quer ativamente unidos à sua fecunda magnanimidade.

E a colheita? Porventura não se faz toda a sementeira a pensar na colheita? Certamente; o laço estreito entre a sementeira e a colheita é reafirmado pelo próprio São Paulo, quando escreve: «Quem pouco semeia, também pouco há de colher; mas quem semeia com generosidade, com generosidade também colherá» (2 Cor 9, 6). Mas de que colheita se trata? Um primeiro fruto do bem semeado, temo-lo em nós mesmos e nas nossas relações diárias, incluindo os gestos mais insignificantes de bondade. Em Deus, nenhum ato de amor, por mais pequeno que seja, e nenhuma das nossas «generosas fadigas» se perde (cf. Exortação Evangelii gaudium, 279). Tal como a árvore se reconhece pelos frutos (cf. Mt 7, 16.20), assim também a vida repleta de obras boas é luminosa (cf. Mt 5, 14-16) e difunde pelo mundo o perfume de Cristo (cf. 2 Cor 2, 15). Servir a Deus, livres do pecado, faz amadurecer frutos de santificação para a salvação de todos (cf. Rm 6, 22).

Na realidade, só nos é concedido ver uma pequena parte do fruto daquilo que semeamos, pois, segundo o dito evangélico, «um é o que semeia e outro o que ceifa» (Jo 4, 37). É precisamente semeando para o bem do próximo que participamos na magnanimidade de Deus: constitui «grande nobreza ser capaz de desencadear processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na força secreta do bem que se semeia» (Encíclica Fratelli tutti, 196). Semear o bem para os outros liberta-nos das lógicas mesquinhas do lucro pessoal e confere à nossa atividade a respiração ampla da gratuidade, inserindo-nos no horizonte maravilhoso dos desígnios benfazejos de Deus.

A Palavra de Deus alarga e eleva ainda mais a nossa perspetiva, anunciando-nos que a colheita mais autêntica é a escatológica, a do último dia, do dia sem ocaso. O fruto perfeito da nossa vida e das nossas ações é o «fruto em ordem à vida eterna» (Jo 4, 36), que será o nosso «tesouro no céu» (Lc 18, 22; cf. 12, 33). O próprio Jesus, para exprimir o mistério da sua morte e ressurreição, usa a imagem da semente que morre na terra e frutifica (cf. Jo 12, 24); e São Paulo retoma-a para falar da ressurreição do nosso corpo: «semeado corrutível, o corpo é ressuscitado incorrutível; semeado na desonra, é ressuscitado na glória; semeado na fraqueza, é ressuscitado cheio de força; semeado corpo terreno, é ressuscitado corpo espiritual» (1 Cor 15, 42-44). Esta esperança é a grande luz que Cristo ressuscitado traz ao mundo: «Se nós temos esperança em Cristo apenas para esta vida, somos os mais miseráveis de todos os homens. Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram» (1 Cor 15, 19-20), para que quantos estiverem intimamente unidos a Ele no amor, «por uma morte idêntica à sua» (Rm 6, 5), também estejam unidos à sua ressurreição para a vida eterna (cf. Jo 5, 29): «então os justos resplandecerão como o sol, no reino do seu Pai» (Mt 13, 43).

 

2. «Não nos cansemos de fazer o bem»

A ressurreição de Cristo anima as esperanças terrenas com a «grande esperança» da vida eterna e introduz, já no tempo presente, o germe da salvação (cf. BENTO XVI, Spe salvi, 3; 7). Perante a amarga desilusão por tantos sonhos desfeitos, a inquietação com os desafios a enfrentar, o desconsolo pela pobreza de meios à disposição, a tentação é fechar-se num egoísmo individualista e, à vista dos sofrimentos alheios, refugiar-se na indiferença. Com efeito, mesmo os melhores recursos conhecem limitações: «Até os adolescentes se cansam, se afadigam, e os jovens tropeçam e vacilam» (Is 40, 30). Deus, porém, «dá forças ao cansado e enche de vigor o fraco. (…) Aqueles que confiam no Senhor renovam as suas forças. Têm asas como a águia, correm sem se cansar, marcham sem desfalecer» (Is 40, 29.31). A Quaresma chama-nos a repor a nossa fé e esperança no Senhor (cf. 1 Ped 1, 21), pois só com o olhar fixo em Jesus Cristo ressuscitado (cf. Heb 12, 2) é que podemos acolher a exortação do Apóstolo: «Não nos cansemos de fazer o bem» (Gal 6, 9).  

Não nos cansemos de rezar. Jesus ensinou que é necessário «orar sempre, sem desfalecer» (Lc 18, 1). Precisamos de rezar, porque necessitamos de Deus. A ilusão de nos bastar a nós mesmos é perigosa. Se a pandemia nos fez sentir de perto a nossa fragilidade pessoal e social, permita-nos esta Quaresma experimentar o conforto da fé em Deus, sem a qual não poderemos subsistir (cf. Is 7, 9). No meio das tempestades da história, encontramo-nos todos no mesmo barco, pelo que ninguém se salva sozinho;[2] mas sobretudo ninguém se salva sem Deus, porque só o mistério pascal de Jesus Cristo nos dá a vitória sobre as vagas tenebrosas da morte. A fé não nos preserva das tribulações da vida, mas permite atravessá-las unidos a Deus em Cristo, com a grande esperança que não desilude e cujo penhor é o amor que Deus derramou nos nossos corações por meio do Espírito Santo (cf. Rm 5, 1-5).

Não nos cansemos de extirpar o mal da nossa vida. Possa o jejum corporal, a que nos chama a Quaresma, fortalecer o nosso espírito para o combate contra o pecado. Não nos cansemos de pedir perdão no sacramento da Penitência e Reconciliação, sabendo que Deus nunca Se cansa de perdoar.[3] Não nos cansemos de combater a concupiscência, fragilidade esta que inclina para o egoísmo e todo o mal, encontrando no decurso dos séculos vias diferentes para fazer precipitar o homem no pecado (cf. Encíclica Fratelli tutti, 166). Uma destas vias é a dependência dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propício para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral (cf. ibid., 43), feita de «encontros reais» (ibid., 50), face a face.

Não nos cansemos de fazer o bem, através duma operosa caridade para com o próximo. Durante esta Quaresma, exercitemo-nos na prática da esmola, dando com alegria (cf. 2 Cor 9, 7). Deus, «que dá a semente ao semeador e o pão em alimento» (2 Cor 9, 10), provê a cada um de nós os recursos necessários para nos nutrirmos e ainda para sermos generosos na prática do bem para com os outros. Se é verdade que toda a nossa vida é tempo para semear o bem, aproveitemos de modo particular esta Quaresma para cuidar de quem está próximo de nós, para nos aproximarmos dos irmãos e irmãs que se encontram feridos na margem da estrada da vida (cf. Lc 10, 2537). A Quaresma é tempo propício para procurar, e não evitar, quem passa necessidade; para chamar, e não ignorar, quem deseja atenção e uma boa palavra; para visitar, e não abandonar, quem sofre a solidão. Acolhamos o apelo a praticar o bem para com todos, reservando tempo para amar os mais pequenos e indefesos, os abandonados e desprezados, os discriminados e marginalizados (cf. Encíclica Fratelli tutti, 193).

 

3. «A seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido»

Cada ano, a Quaresma vem recordar-nos que «o bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia» (ibid., 11). Por conseguinte, peçamos a Deus a constância paciente do agricultor (cf. Tg 5, 7), para não desistir na prática do bem, um passo de cada vez. Quem cai, estenda a mão ao Pai que nos levanta sempre. Quem se extraviou, enganado pelas seduções do maligno, não demore a voltar para Deus, que «é generoso em perdoar» (Is 55, 7). Neste tempo de conversão, buscando apoio na graça divina e na comunhão da Igreja, não nos cansemos de semear o bem. O jejum prepara o terreno, a oração rega, a caridade fecunda-o. Na fé, temos a certeza de que «a seu tempo colheremos, se não tivermos esmorecido», e obteremos, com o dom da perseverança, os bens prometidos (cf. Heb 10, 36) para salvação nossa e do próximo (cf. 1 Tm 4, 16). Praticando o amor fraterno para com todos, estamos unidos a Cristo, que deu a sua vida por nós (cf. 2 Cor 5, 14-15), e saboreamos desde já a alegria do Reino dos Céus, quando Deus for «tudo em todos» (1 Cor 15, 28).

A Virgem Maria, em cujo ventre germinou o Salvador e que guardava todas as coisas «ponderando-as no seu coração» (Lc 2, 19), obtenha-nos o dom da paciência e acompanhe-nos com a sua presença materna, para que este tempo de conversão dê frutos de salvação eterna.

 

Roma, em São João de Latrão, na Memória litúrgica do bispo São Martinho,

11 de novembro de 2021.

Papa Francisco

 

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[1] Cf. SANTO AGOSTINHO, Sermones 243, 9,8; 270, 3; Enarratio in Psalmis 110, 1.
[2] Cf. FRANCISCO, Momento extraordinário de oração em tempo de pandemia (27 de março de 2020).
[3] Cf. IDEM, Angelus de 17 de março de 2013.

Homilia de Sua Excelência Revma D. Edgar Peña Parra, Substituto da Secretaria de Estado do Vaticano

Santuário de Santa Rita – Ermesinde

20 de fevereiro de 2022 

 

Excelências Reverendíssimas,

Reverendo Padre Reitor,

Reverendos Padres, Religiosos e Religiosas,

Irmãos e Irmãs,

Feliz por celebrar convosco o Dia do Senhor neste Santuário, trago a saudação e a bênção do Santo Padre para todos vós, amados irmãos e irmãs! De bom grado partilho alguns pensamentos que suscitou em mim a Palavra de Deus, agora proclamada. Em abono da verdade, tenho de dizer que o texto evangélico de hoje não parece exigir particulares comentários; mas, sim, muita coragem para ser posta em prática. «Amai os vossos inimigos, fazei bem àqueles que vos odeiam; bendizei àqueles que vos amaldiçoam, orai por aqueles que vos maltratam» (Lc 6, 27-28): são palavras que deixam fora de cena uma conduta religiosa «prudente»; palavras que chegam mesmo a subverter o bom senso: desde que existe o homem na terra, ao mal responde-se com o mal e ao bem com o bem.

Jesus vai além disto, muito mais além, até ao inverosímil, chegando a pontos de pedir o amor aos inimigos, de dizer: «dá a todo aquele que te pedir e, ao que levar o que é teu, não lho reclames» (6, 30). Notemos que não atenua sequer o conceito, ajuntando que, entretanto, a pessoa que pede deve pelo menos fazê-lo com gentileza, ou que o inimigo deve dar algum sinal de degelo. Fica-se estonteado e apetece perguntar: como é possível? O Senhor não sabe que, seguindo à letra este Evangelho, nós, discípulos, viveríamos como perdedores e muitos se aproveitariam de nós? Mas Jesus não quer saber; antes, aumenta a dose e, alguns versículos depois, reitera o conceito, repete – um facto muito raro no Evangelho de Lucas – o que disse: «Amai os vossos inimigos» (6, 35). Para cúmulo da surpresa, notemos que o Senhor não nos dirige piedosas exortações ou convites declináveis, mas exigências concretas e taxativas.

Uma coisa, porém, há que sublinhar: Jesus não pretende que se nos tornem agradáveis os nossos inimigos, nem que demos a quem quer que seja. Não nos pede para forçar as sensações: de facto, segundo as suas palavras, os inimigos permanecem inimigos e dar continua a ser um sacrifício. Ele sabe que não é possível iludir o sentimento que nos vem do coração. Mas recomenda que nos empenhemos ao nível de opções, seguindo um único critério: responder ao mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e tomando nós a iniciativa, sem esperar que os outros mudem e se arrependam. Em última análise, Jesus não nos pede que nos comprazamos, mas que nos amemos. E amar-nos é uma coisa muito concreta, segundo o que Ele acrescenta: «fazei bem e emprestai, sem nada esperar em troca» (Lc 6, 35). Perante esta radicalidade, surgem espontaneamente pelo menos duas perguntas. A primeira: por que motivo o Senhor chega ao ponto de nos pedir tudo isto? A segunda: como podemos pô-lo em prática?

Porque é que Jesus nos pede isto? O Evangelho avança um motivo só: para ser «filhos do Altíssimo, que é benigno para com os ingratos e os maus» (6, 35). É o único motivo! De facto, o Senhor resume tudo, dizendo «sede misericordiosos, como o vosso Pai é misericordioso» (6, 36). Esta é a diferença – reiterada três vezes –com quantos Jesus chama «pecadores»: são aqueles que não conhecem o Pai e, por conseguinte, vivem segundo padrões de juízo puramente humanos. Ser ícones do amor do Pai: eis a diferença dos cristãos no mundo. Queridos irmãos e irmãs, muitas vezes temo-nos distinguido e distinguimo-nos como cristãos pelo que acreditamos, pelas posições que assumimos a respeito de Deus, do homem, da sociedade, das opções morais e políticas. Hoje, porém, o Evangelho leva-nos a uma essencialidade radical: testemunhar o modo de proceder do Pai, o seu amor incondicional e fiel por todos, sem cálculos nem distinções. Eis a diferença cristã: viver sem ser contra alguém, mas por todos. É exigente; todavia, segundo o Senhor, é o melhor caminho para evangelizar, porque é o que melhor revela o Pai. E nisto, caríssimos, creio que cada um de nós precisa de melhorar.

Passemos então à segunda e fundamental questão: Como colocar em prática o que Jesus pede? Alguém disse que, entre o dito do Evangelho e a sua prática, há a mesma diferença que subsiste entre a música escrita e a música tocada. Continuo no contexto da metáfora musical, inspirando-me no grande órgão de tubos deste Santuário, cujo vigésimo aniversário recordamos hoje. Como se sabe, o órgão, apesar de composto por mecanismos mecânicos refinados que são acionados pelo toque humano, conta-se entre os instrumentos musicais «de sopro» em que o som se deve principalmente às modulações do ar e não tanto à percussão humana. Deixando a metáfora… Para que a partitura do Evangelho seja executada no mundo, não bastam mecanismos pastorais comprovados e em bom funcionamento. É preciso «um sopro», um ar puro que vem de fora e não pode ser fabricado. É necessário o Espírito Santo. É Ele o sopro divino que transforma os nossos gestos e o nosso compromisso naquela «música da alma» que toca os corações e muda a história. Caso contrário, todo o esforço é vão.

Pensemos no exemplo talvez mais eloquente a este respeito: o dos apóstolos, colunas da Igreja. A sua história está repleta de incongruências e fracassos, que os Evangelhos não escondem. Mas a partir do momento em que desceu sobre eles o Espírito Santo, teve lugar uma mudança irreversível. A sua humanidade não se tornou perfeita e irrepreensível, mas operou-se neles uma inversão: se antes o centro da vida era o próprio eu, depois do Pentecostes o centro passou a ser Deus, e o objetivo da vida era imitá-lo, sem medo de amar até à loucura e até passar através da cruz para se assemelharem a Ele. Por isso o Espírito Santo é o segredo para ajustar a nossa vida à harmonia do Evangelho. Com Ele, é possível viver tudo o que Jesus nos pede hoje.

Ao contrário, sem o Espírito de amor, não seremos capazes de amar como Jesus deseja. Isto, já nós o sabemos; o mais difícil é traduzir na prática esta convicção, ou seja, recordar-se de rezar ao Espírito Santo para que intervenha precisamente nisto: na nossa capacidade de amar. Com frequência, pedimos-Lhe inspiração, conselho, fortaleza, ajuda para iniciativas pessoais e eclesiais, mas seria conveniente pedir-Lhe com insistência a capacidade de cumprir aquilo que o Senhor recomenda acima de tudo: pôr em prática o mandamento do amor. Ser-nos-á útil habituar-nos a invocar o Espírito e dirigir-nos a Ele mediante a Palavra que Ele próprio inspirou. Sendo assim, por que não dedicar alguns momentos nos próximos dias para O invocar e reler o Evangelho de hoje? Poderíamos deixar este pequeno texto na mesinha de cabeceira e, ao longo de toda a semana, assimilá-lo na oração. Fazer ressoar em nós as suas palavras é o primeiro passo para as acolher e pôr em prática.

Um Padre da Igreja, Santo Isaac de Nínive, escreveu uma coisa surpreendente a propósito das deficiências dos cristãos. Escreveu que «o maior pecado é não acreditar nas energias da ressurreição» (Sermões Ascéticos, I, 5). Pode parecer uma afirmação estranha, mas é plenamente coerente com o que temos vindos a dizer. Quer-nos dizer que a culpa dos crentes e das comunidades cristãs ao longo dos séculos foi, acima de tudo, nivelar-se, não acreditar profundamente nas «energias» que só o Espírito Santo, autor de toda a ressurreição, provê. De facto, só Ele é que introduz no mundo uma vida nova, a do amor que dá a vida, capaz de superar os limites da condição humana.

Caríssimos, este santuário recorda-nos que o Espírito está em ação e realiza maravilhas nos homens. Um exemplo disso são os Santos, que O deixaram agir nas suas vidas, e um modelo excelente disto mesmo é Santa Rita, a quem está dedicado este templo. Pensemos nesta jovem do século XIV, filha de pais idosos que se opunham à sua vocação religiosa e deram-na em casamento a um jovem de temperamento colérico e impetuoso. Confiante na Providência, Rita conseguiu transformar o caráter do marido, através duma santa paciência evangélica e da caridade extraordinária que hauria da fé. Viveu depois a tragédia da morte violenta do marido, assassinado numa emboscada, e o medo pela sorte dos filhos, envolvidos na série de vinganças que se desencadeara. A este mal, respondeu sempre com as armas do bem, com a tenacidade da oração e a generosa oferta da vida. Quando, finalmente, pôde consagrar-se ao Senhor, viu o seu pedido rejeitado por três vezes. Finalmente aceite, viveu quarenta anos de intensa vida religiosa, rica em obras de pacificação entre as fações do país, sem considerar inimigo nenhum daqueles que lhe tinham feito mal a ela e à sua família.

Esta vida representa uma extraordinária melodia evangélica. Habitualmente esta Santa é representada diante do Crucifixo, muitas vezes com um espinho da coroa de Cristo espetado na testa, em memória dum episódio místico que a carateriza. Isto é ilustrativo também para nós: o Senhor redimiu o mundo com a cruz e pede-nos para continuar a sua obra com a força suave do Espírito e segundo os seus caminhos, purificando o mal do mundo unicamente com o ar puro do Evangelho. Neste sentido, somos chamados a transformar, com humildade e perseverança, o mal em bem: fazer como as árvores, que absorvem a poluição e a transformam em oxigénio. Santa Rita é conhecida como «a santa dos impossíveis». Mas a sua vida extraordinária de mulher, esposa, mãe e religiosa não recorreu a meios fulgurantes e extraordinários; moveu o impossível com a terna força da cruz e a docilidade ao Espírito Santo.

Amados irmãos e irmãs, hoje gostaria de rezar para que o Espírito desperte em cada um de nós a beleza da própria vocação: sermos ícones vivos do Pai no mundo, templos do Espírito Santo, membros que se unem a Cristo no seu sacrifício de salvação. Que o pensamento da sublimidade da nossa vocação aumente o nosso zelo e nos motive dia a dia a «tornar música o Evangelho» onde vivemos.